Tente provar para si mesmo que existo para lá de uma ideia em sua cabeça e que, por exemplo e inclusive, pode estar sendo sugerida por qualquer coisa sem a menor relação com o que acredita ser de fato eu, isto é, carne e ossos, entre outros atributos. Tente e conceda a si próprio uma prenda depois de o conseguir - se conseguir. Uma sugestão: digamos que esteja frente a mim, em pessoa, acreditando por isso que pode lançar mão dos sentidos para encerrar a questão - afinal, está me vendo, pode me ouvir, tocar etc. Entretanto, pergunte-se, antes de se precipitar em conclusão rasa, o que no interior de uma cabeça os sentidos são, senão ideias de que se percebe - ou de se haver percebido - e o que ou quem garante não ser esse, o da percepção, o momento crucial do engodo por trás de que estaria um celebrado 'malin génie': a distinção entre uma sensação em ato e sua lembrança seria descritível, em princípio, como uma nota aposta à ideia de cada qual, uma ideia agregada a cada uma das outras - o que, em realidade, pode não passar disso mesmo, haja ver a relativa e descômoda frequẽncia de se estar seguro de sentir, quando na verdade se está apenas lembrando, e vice-versa. Ideias, ao que parece, são as únicas coisas de que, com boas razões, se pode dizer existirem e serem tudo o que nos é dado possuir.
Fique
à vontade para experimentar o tanto que acredita convir, mas permita-me
intervir ante um brinquedo fatal para uns tantos. Que não o surpreenda,
assim, depois de exaurir-se em experimentos e tendo mantido o prumo
mental, que conclua que existo - além de tudo mais à volta, incluso o
seu próprio corpo! - por somente acreditar. A depender de seu
estado de espírito ou inclinação pessoal, pode sentir-se decepcionado ao
se ineirar de que em fim de contas jamais passou de crédulo a mais,
que confiou num argumento de que não há provas, nem como provar, embora,
por outro lado, possa entrever nessa credulidade o sentido - algo
enfraquecido, no entanto - do mecanismo que a parte sólida da teologia,
em particular a cristã, tornou famoso e cujo nome tem hoje uso trivial, a
saber, fé.
Mal
sabe a cristandade nominal, entretanto, que falar de fé, assim como a entende a doutrina, da maneira
ligeira que fala equivale a pronunciar em vão o nome de Deus - o que
também faz, de modo explícito, até sem o perceber. Entre outras coisas, isto é o que se aprende do considerar com o devido cuidado a melhor e
talvez única definição rigorosa que se tem desse fenômeno ou sentimento, a que
nos dá Paulo em Hebreus 11.1 - aqui, na versão traduzida da King James Bible: "Fé é a substância das coisas esperadas e a prova do que não se vê".
A fraseologia filosófica, típica dos gregos, é aí inconsteste, bem como, independentemente
de outros motivos para usá-la, a clara intenção de falar para uma
mentalidade mediterrânea impregnada de tudo quanto à época era helênico já, pelo que se demonstra com facilidade ser a fé aquilo - ou a
'matéria' - de que é feita a esperança, sendo por isso ela própria prova
do quanto por certo se obterá por esperar, embora estando isto para lá do
que é possível perceber-se (ou "o que não se vê").
Para
compreender o sentido - o forte - de 'fé', perceba agora você o quanto
espera, tem esperado, a cada instante da vida, mas procure considerar
não apenas aquilo que tem por grandioso ou por esse valor aproximado.
Perceba que, sem 'dar fé', isto é, sem notar que a usa, espera mais
amiúde por coisas bem simples, como reencontrar aquele a quem disse 'até
amanhã', dar o passo após um outro, e até o piscar involuntário dos
olhos: por tudo isso e tudo mais espera, observe, espera realizar cada
qual dessas ações comezinhas, e mesmo depois de se haver inteirado da
regra d'O Jogo, a única, a que estabelece inexistir prazo
certo para o jogador ser retirado - ou retirar-se - da partida.
Espera-se, pois, sem garantias de obter, mas como se com certeza - por
apenas esperar - o fosse, e por consolo, é possível, tem-se a suspeita
de que daquela vez, a verdadeiramente última, a de sair d'O Jogo, não se saberá então que se obteve nada (ou o nada, ele próprio)
- a despeito de as religiões em geral alegarem que mesmo aí haverá algo,
sim, não de necessidade bom, mas por certo o merecido por cada um, tendo
em vista como se portou ao longo da 'jogatina'. A ideia de 'crer', como
se percebe, pode ser aqui entendida como apenas subproduto da ideia de
'fé', modo impreciso de descrever seu efeito, uma vez que o indivíduo -
por assim dizer - em fé, não tem, a rigor, no que crer, porque, assim
como a delineia Paulo, a fé é autossuficiente, uma vez ser matéria de
que se faz justo aquilo por que se espera e, enquanto tal, é também prova -
evidência - de isto haver, malgrado para lá do alcance dos sentidos (e , por isto mesmo e a rigor, esperado).
Fé é a presença - a real - do que, fosse apenas pelos sentidos, seria mero aguardo, e de meras ficções, sendo desnecessário, ao contrário, crer-se no que está evidente existir: muito além de crença, ela é certeza - e inabalável. Paulo deixa claro ser a fé o que faz você andar sem reservas de par com o tempo, sincronizar com seu passo inalterável como se houvesse escolhido fazer isso por toda a vida - ou mesmo sem o querer, mas como se o tivesse querido ou como se nem sempre se desse conta de alguma vez ser possível o não ter quisto. E tal fará você, repita-se, sem saber até quando, ou até quando achar que bastou - sim, não pense que também por isso não se espera, que em escolha assim não esteja envolvida a fé como Paulo a postulou: talvez aqueles que desse modo o decidam, a despeito do desprezo ou desespero dos que ficam para trás, tenham em mente somente desafiar a regra d'O Jogo, reescrevê-la, ainda que lhe apondo mera nota ao rodapé, pois, afinal, cometem uma das possibilidades, uma das jogadas válidas (por concebíveis), portanto, embora nem todos os que a usaram e se fizeram justificar tenham tido oportunidade ou a paciência de deixar isto esclarecido.
Fé é a presença - a real - do que, fosse apenas pelos sentidos, seria mero aguardo, e de meras ficções, sendo desnecessário, ao contrário, crer-se no que está evidente existir: muito além de crença, ela é certeza - e inabalável. Paulo deixa claro ser a fé o que faz você andar sem reservas de par com o tempo, sincronizar com seu passo inalterável como se houvesse escolhido fazer isso por toda a vida - ou mesmo sem o querer, mas como se o tivesse querido ou como se nem sempre se desse conta de alguma vez ser possível o não ter quisto. E tal fará você, repita-se, sem saber até quando, ou até quando achar que bastou - sim, não pense que também por isso não se espera, que em escolha assim não esteja envolvida a fé como Paulo a postulou: talvez aqueles que desse modo o decidam, a despeito do desprezo ou desespero dos que ficam para trás, tenham em mente somente desafiar a regra d'O Jogo, reescrevê-la, ainda que lhe apondo mera nota ao rodapé, pois, afinal, cometem uma das possibilidades, uma das jogadas válidas (por concebíveis), portanto, embora nem todos os que a usaram e se fizeram justificar tenham tido oportunidade ou a paciência de deixar isto esclarecido.
Fé,
finalmente, é sinônimo da própria vida, do viver: um sujeito morto é
indivíduo sem fé. E, fossemos mais sábios, um pouco somente, já teríamos
entendido que tudo quanto vive o faz por fé, em fé, e inclusive já
suspeitaríamos de ela estar presente no que supomos inanimado, na matéria toda - ainda que morrente ou em processo de desagregar-se, pois
há movimento, alguma vida, no que se desfaz e enquanto não se desfez, estando em vias,
apenas, de se refazer noutra coisa, também plena em fé. Por isso, o termo
'católico', quer dizer, 'universal': devido à noção de se haver chegado ao
cerne comum, o cerne ele mesmo, que ninguém seria capaz de negar - justo
por estar vivo e, assim estando, não ser possível não haver fé. E só por
ela é possível conhecer Deus sem sombra de dúvida: em face da fé os dois
principais artifícios para demonstrar Sua existência, Cosmológico e
Ontológico, não passam de ensaios de redução ao absurdo que, ao fim e ao cabo,
provam melancólicamente como e porque Ele é indemostrável por
caminhos que não o da fé. Na fé não há incômodo em não se ter Deus ao
alcance dos sentidos, porque, repita-se, como mostra Paulo, ela é "prova
do que não se vê", desde que se espere ou, em fé, se queira ver.
Deus
é somente o objeto último ou maior da fé, não o seu único. Mas para ela (ou
nela) pouco interessa saber como ou o que Deus é além da esperança de
com Ele ou por Ele fazer das coisas - do mundo - sentido, bem como lhe é
de escassa importância saber qual sentido têm, se é que mais de um é
possível e porque ao menos um, é certo, há. E é nesse sentido que temos
ideia de existirmos, pouco importa que d'Ele, assim como do mundo, só
tenhamos ideias por testemunho privado, exclusivo, não compartilhável,
nada obstante entretenhamos também a ideia de o compartilharmos.
Não, não é dizer, assim, que a ciência é impossível, ilusória, insensata, que o
conhecimento não há. Não. É, ao contrário, dizer que só por fé podemos
conhecer: e a ideia de haver um Deus, ainda que distante desta que hoje
fazemos, foi em verdade o 'fiat' da ciência no homem
inteirando-se do irrespondível, da questão da origem: foi em resposta a
isto que a fé prontamente apôs Deus, ou a ideia de haver a causa das
causas demais.
Quer
saber o que é, como é a ciência, como se dá o conhecimento? Olhe para Tomé: era-lhe preciso tocar a
chaga, o que lhe foi concedido, já que isso lhe parecia fundamental
para o exercício da fé, e não porque a chaga tocada fosse, enquanto
ideia, em essência diversa da chaga vista, embora importe admitir que
dentre os sentidos o tato é o único a implicar a noção de proximidade
espacial certa - além de ser de fato único, isto é, ser esse do qual os
demais são variações sintonizadas para distintos padrões vibráteis do
mundo. Mas, que se repita: a chaga tocada jamais passaria, em Tomé, da
ideia de tocar ou de haver tocado a chaga e, enquanto ideia, nada nela
lhe garantiria, inclusive, que fosse chaga o que tocou ou mesmo que
tocou seja o que for: entre ela, ideia, e o que se estima tê-la causado
há abismo intransponível senão pela fé, ainda que formulada naquele seu
sentido menos forte, o de 'crença'. Como Tomé em sua obstinação pelo
toque, a ciência elege, não um sentido em especial, mas sim um modo de
usar todos, a começar por os pôr sob suspeita, como se o apóstolo,
depois de seguro de a chaga ser o que vira por tê-la, enfim, tocado,
passasse a duvidar da identidade de quem a carregava e dos que o
reconheciam como o Cristo, multiplicando-se em perguntas que brotam de
outras quando respondidas, e como se fosse possível serem absolutamente
credíveis as respostas a quaisquer delas.
Consoante a anedota em que frente ao mar Agostinho meditava a Trindade ao passo que uma criança - ou anjo - se ocupava de, numa concha, transportar para buraco ínfimo na areia a água que colhia na marola, a ciência quer pôr o mundo nesse orifício diminuto - ainda que infinitesimal - escavado na realidade e a ela aberto, de hábito chamado 'mente', mas como se prescindindo, para tal, das facilidades do sentido fraco da fé, o de crença, jogando com o duvidar do que percebe, na expectativa de incrementar ou de assegurar, assim, a certeza frágil que o acompanha, no entanto para apenas inteirar-se, bem mais adiante, de que ao fim não foi possível prescindir dele por completo, de que haverá de haver ao menos algo - ou mancheia disto - em cuja verdade ou realidade terá de crer sem mais questionar, reconhecendo, além de tudo, tratar-se isto de fundamento, ou de noções sem as quais o conhecimento restante é impraticável, os chamados axiomas. É preciso - e mesmo natural parece ser - haver crença no que dá suporte ao conhecer, ainda que o qualificando de 'autoevidente', em fim de contas eufemismo de quem se viu forçado a contrariar de seus propósitos um dos maiores (o de duvidar enquanto artifício para se chegar à certeza do que se provou ou se quer provar), de quem foi vencido, em sua obstinação de duvidar, por esse aspecto da fé.
Consoante a anedota em que frente ao mar Agostinho meditava a Trindade ao passo que uma criança - ou anjo - se ocupava de, numa concha, transportar para buraco ínfimo na areia a água que colhia na marola, a ciência quer pôr o mundo nesse orifício diminuto - ainda que infinitesimal - escavado na realidade e a ela aberto, de hábito chamado 'mente', mas como se prescindindo, para tal, das facilidades do sentido fraco da fé, o de crença, jogando com o duvidar do que percebe, na expectativa de incrementar ou de assegurar, assim, a certeza frágil que o acompanha, no entanto para apenas inteirar-se, bem mais adiante, de que ao fim não foi possível prescindir dele por completo, de que haverá de haver ao menos algo - ou mancheia disto - em cuja verdade ou realidade terá de crer sem mais questionar, reconhecendo, além de tudo, tratar-se isto de fundamento, ou de noções sem as quais o conhecimento restante é impraticável, os chamados axiomas. É preciso - e mesmo natural parece ser - haver crença no que dá suporte ao conhecer, ainda que o qualificando de 'autoevidente', em fim de contas eufemismo de quem se viu forçado a contrariar de seus propósitos um dos maiores (o de duvidar enquanto artifício para se chegar à certeza do que se provou ou se quer provar), de quem foi vencido, em sua obstinação de duvidar, por esse aspecto da fé.
Por
natureza, é fácil ver, a ciência não passa de laboratório ou, seria mais
acertado dizer, de sala de interrrogatórios instalável em qualquer nicho
do mundo, desde a mente mesma do interrogador, digo, cientista, até as
maiores extensões a céu aberto - ou no próprio céu, se assim convier. Aí
crivará ela a realidade - ou alguma de suas manifestações, entre as quais a
ideia de número, entre as ideias demais - de perguntas,
algumas tolas, até, como se para confundi-la, depois de seja algemá-la,
amordaçá-la, ou seja o que ao inquérito pareça apropriado, de modo a obter
respostas precisas que, julga a ciência, decorrem necessariamente, isto
é, deriváveis de cada uma das prévias coerções induzidas.
Desse viés a ciência é como o reverso da Justiça, que deve inquirir
segundo lhe instrua uma lei e em nome de outra que por suposto fora
contrariada: nos laboratórios a questão é conhecer a que leis a
interrogada está submetida - e, se é cerceada, não é tanto por maldade,
mas por presumir-se que falaria demais se não constrangida, que falaria
a ponto de inviabilizar o inquérito: nascida com a ideia de Deus e
secreta ou tacitamente determinada a encontrá-Lo, a ciência entretanto -
como sugeriu o Estagirita - não lida bem com a noção do muito grande,
do muito geral, com a noção da totalidade, pelo que, nada obstante, vive
tentada, e com o que é fadada a conviver na consecução do que se propõe realizar .
Em sentido absoluto a totalidade - ou a grandeza
maior contendo as demais todas - é impensável; inexiste, assim como
inexiste absolutamente o ínfimo e, segundo a noção de tempo, princípio e
fim absolutos: desde quando concebida, a ideia de Deus deixou pistas
claras disso. Princípio e fim não escapam de ter questionado o que lhes
vem respectivamente antes ou depois, assim como maior e menor seduzem
pelo que lhes estaria além e aquém em dimensões. Tais ideias só têm
sentido relativo, em contextos limitados. De absoluto no mundo parece haver só
a noção de tudo ser relativo - no sentido de as coisas se
definirem umas em contraste com ou em relação às outras. É a
relatividade das coisas o que nos sugere a inferência de haver
indivíduos, que nos propicia a individuação, nada obstante noção
transitória ou relativa a o que na ocasião
viu-se conveniência em individualizar, uma vez que para cada indivíduo é
sempre possível encontrar seja as partes (indivíduos que o compõem),
seja os atributos, seja indivíduo maior que o contém.
E
individuação provê o número, a rigor capaz de somente exprimir
quantidade e, imbricado nela, o sequenciamento de indivíduos, a ordem.
Número é abstração que é provável ter iniciado com relacionar objetos de conjuntos
quaisquer a, entre objetos outros, os dedos das mãos. Em essência não
passa de uma a mais dentre as abstrações incontáveis ordenhadas nos
currais do que chamamos 'linguagem', mas para a qual se deu e se dá
atenção sem limites, de sorte que da condição originária de ordenação de
quantidades segundo cada qual possua certo indivíduo a mais ou a menos
do que as quantidades que lhe são contíguas, bem como da operação única a que se
sujeitam, o adicionar, e seu reverso, o subtrair, de tão pouco, pois, se
urde como que universo monumental de truques, mundo esse cujas
dimensões levam o incauto à suspeita de haver-se descoberto - ou criado -
linguagem distinta da chamada 'linguagem' ela mesma, falácia batida do, por hipótese, equiparar a parte ao todo (na qual se perde o sentido de um não ser a
outra), desculpável, entretanto, pela eventual e engenhosa evasiva de que é usada à guisa de tão só metáfora. 'Truques', sim, porque nada além de truques
são multiplicar, dividir, exponenciar, radiciar e os demais com que se
realizam em lotes a adição e, claro, seu reverso, a subtração. E
'mundo', sim, também, pois o mero adicionar e subtrair, em particular
quando produzido aos lotes, é capaz de revelar aspectos insuspeitos da
ordenação de quantidades, como irregularidades, vazios fenomenais,
repetições sem fim, aberrações desenhando-se no que o imediatismo
associativo entranhado na capacidade de pensar põe-se á vontade para
apor aí, sem maiores esforços, o que infere haver no mundo (o mundo
'ele mesmo'), a paisagem suposta existir para lá do sujeito e de sua
capacidade de pensar.
No entanto, a despeito de sua
utilidade em praticamente tudo que, humanos, somos capazes de fazer, há
certo consenso, faz milênios, que, em seu rigor, em conjunto com as
formas austeras - ditas 'geométricas' - de imediato associadas a ele, o
número não é - não pode ser - parte do mundo como o concebemos, pois até
mesmo as irregularidades que apresenta o seu contínuum parecem indicar
que advém de natureza distinta desta inexata e imperfeita no interior
de que acreditamos existir. E se não está no mundo, mas desenha-se como
se mundo fora, ora, diz a associação imediatista do pensamento, o número
deve estar em mundo outro, próprio, ou ainda, deve ser isso que o
consitui, mundo a que não têm - e não podem ter - acesso os sentidos
comezinhos, mundo contemplável exclusivamente pelo puro ato de pensar. A
habilidade de arbitrar a existência de universos tendo por matéria tão
só ideias é provável conter traços de defeitos, morbidades, se não é ela
mesma um destes, sorte de cacoete ou sintoma da claustrofobia de quem
no fundo suspeita habitar somente aquilo que pensa, domínio de magnitude
inestimada que se acredita confinado à exiguidade suposta num crânio.
Mesmo
o idealismo, responsável exclusivo pela inteiração de não haver ponte
trafegável entre pensamento e mundo (ou entre ideias acerca do mundo e o
mundo que se presume causá-las), depois de cumprida sua imprescindível
missão, volta e meia titubeia e, aqui e ali, gagueja o que por princípio
não lhe cabe sequer conceber, a saber, a sugestão de como o mundo, esse
para lá das ideias, deve - ou tem de - ser: trai a si mesmo, por assim
dizer, o idealismo, ou melhor, traem-se os idealismos, quase todos,
exceto, é possível, o pirronismo original, de que, por azar, pouco ou
nada se sabe. A filosofia assalariada rirá, por certo, fazendo pouco das
afirmações a seguir, preocupada como está com demonstrar quão imprescindível ela
própria ainda é na faina de descrever as coisas - tarefa que lhe usurpou a
autodenominada 'ciência' desde quando (o)usou chamar-se 'filosofia
natural', nome de que logo abriu mão à guisa de protesto de absoluta
confiança em si mesma e com que retirou da filosofia - a propriamente
dita - a incerta audiência que a penas cultivou ao longo de milênios:
há-de reconhecer-se, primeiro, que o nome 'idealismo' tem de representar
uma única essência ou não faz qualquer sentido usar esta mesma e única
designação para todas as suas variantes; segundo, não menos óbvio do
que o ponto anterior, que o domínio de que trata o idealismo, como
indica o nome, tem de ser o exclusivo das ideias; e, terceiro, que seu
aparecimento se dá ou se deu com a noção de as ideias, independentemente
do que representam, em aparência ordenarem-se segundo princípios
próprios, na falta dos quais seu propósito fundamental, o de fazer
sentido, é frustrado - e tal sentido, definido como 'expurgado de
contradições', teria de se fazer ainda que à revelia do sentido que as
coisas no mundo, nelas representadas, aparentam ter.
Assim
foi que no seu poema o eleata Parmênides trouxe o idealismo a este
mundo com a missão de cobrar das ideias - e de seja qual for a linguagem
em que se exprimam - o bastante sentido, a coerência, a purga das
contradições, que são enfim uma só - afirmar em concomitância com
negar algum atributo de objeto qualquer, o dizer que ele é e, ao mesmo
tempo, não é caracterizável de certo modo: isto, Parmênides é enfático quanto ao ponto, é
precisamente o que não é possível fazer quem tenha por propósito falar
com fidedignidade das coisas, e para o demonstrar propôs como
fidedignamente deveriam ser descritas: existindo num universo em que
tempo e espaço são declarados impronunciáveis e todo movimento se
deveria, segundo os paradoxos que nos deixou seu discípulo Zenão, a uma
concessão que faria a consciência a si própria, desdenhando da condição infinitesimal do que observa, do espaço em que supõe moverem-se as coisas, que entre dois quaisquer de seus pontos possui infinidade de outros por que deve passar o que quer que se mova. É o
que se deduz também do diálogo em que o velho imobilista é posto por
Platão com a incumbẽncia de reduzir a pó e cinza a possibilidade
mesma de pensar o universo segundo o eleatismo, não sem antes ter dado
tratamento igual à 'Ideia' platônica. Mas Platão, como se sabe, tinha
entre suas mestrias a de mostrar como por natureza as ideias são
imprecisáveis, à sua maneira contrariando a convicção parmenidiana de
que empregá-las com prudência seria a possibilidade ou a esperança única
de lograrmos conferir sentido ao que pensamos, e nisto, ao contrário,
como bom eleata que foi, alinhava-se Platão a Zenão, embora indo-lhe
além, exponencialmente, ao sugerir que a concessão feita a si pela consciência com
respeito a tempo e espaço diria respeito também à natureza indefinível
dos conceitos, de hábito tratados como se inteiramente definidos fossem.
Nada
obstante sucedendo eventualmente em evadir-se da armadilha do dizer como é ou deveria
ser o mundo, na qual tende a tropeçar na faina de fazer-se
compreensível, tratar-se-ia o idealismo, ainda assim, de filosofia
imperfeita, pois tome-se o caso de Pirro, de quem se diz ter-se omitido a
opinar sobre a natureza das coisas, alegando lhe parecerem
demasiado inconstantes para merecerem sua opinião - isto é, para que
lhes atribuísse sentido final, definição: Pirro devesse porventura ter-se
mantido aí em silêncio, e é provável o não ter feito por cortesia para com seu interlocutor, porque seria igualmente
improvável soubesse, em virtude mesmo de sua opinião,, se não apenas existir quem o inquiria, ao menos
também que o sujeito tivesse por válida sua resposta: pois como aferir a inconstância do mundo se é algo no mundo o
que anuncia tal inconstância? Parece que a verdade última do
idealismo, se admitida, só pode o ser por conta e iniciativa próprias de
quem a admite, espécie de epifania que perde em fulgor se transferida a
outrem, e neste sentido é que o idealismo puro, radical, tende ao
solipsismo - como nas Meditações o demonstra Descartes, que o delineia
com o fio do ceticismo pertinaz para justo pavimentar o caminho ao fim
do qual estaria, inegável (assim, parece, acreditou), a realidade, o
mundo real, pagando aí mesmo o filósofo por sua língua, uma vez
confinado de livre-vontade à solidão absoluta das próprias ideias: por
não ver como escapar-se dali sem lançar mão de Deus que, a crermos no
que escreveu, o lança de volta, como se por milagre, ao convívio mundano
das coisas.
A travessura idealista de Descartes por
certo ilustra a ductibilidade da argumentação, rigorosamente racional,
dirigindo-se ao idealismo em contraste com a inexistência de meios senão
os radicais, como - no caso - o arbítrio da intercessão divina, para
trazer de volta a ideia do realismo, embora na condição de postulado.
No entanto, isto obviamente não acarreta, como sugere Collier, a
inexistência da realidade para lá das ideias, a que é suposta
originá-las, e sim haver nada a dizermos dela, como quis Pirro, ao sujeito competindo
somente arbitrar ou arrazoar sobre as ideias que possui, incluindo as de que de fato
experimenta o mundo, de que é de fato capaz de alterá-lo, contanto que as não extrapole. Esta observação serve também a uma distinção
crucial, estabelecida entre o que seriam duas capacidades, a de narrar - ou teorizar - a realidade, a suposta 'por trás' das ideias, e a de interferir
nela, ainda que disto só se possua a ideia de que se o faz, sendo a
primeira muito mais marcada por dificuldades e insucessos do que a
segunda, embora esta só frutifique, como o faz, óbvia e
paradoxalmente por intercessão da anterior, de modo que, assim como
inexiste teoria sem alguma práxis, não há também práxis sem a mínima e
adequada teoria a orientá-la, ainda que incerta e de fato mutável, como é
habitual toda teoria ser. A atuação no mundo, aqui chamada de 'engenharia', distingue-se do relatá-lo por ser atitude muito mais flexível, adaptável, do que este, de modo que tudo quanto o teórico não é capaz de prover ao 'engenheiro',
este é instado a superar com o bastante improviso que, por seu lado, é
de inestimável serventia para o próprio teorizar, renovando-o.
'Engenhar' é, enfim, tudo de
que somos capazes, a despeito de, é mister insistir, isto poder tratar-se de tão só a ideia
de engenharmos: do fazer arte à tecnologia, passando pelo teorizar
ele próprio, incluso o chutar com desprezo - como fez um certo Dr. Johson, julgando assim refutar Berkeley - uma pedra, nada disto consistindo entretanto em prova,
insista-se, de que se o faz ou de que, mesmo o fazendo, possuamos mais
do que a ideia de o fazermos. "Mas", irromperá o incauto, "de que serve
tal impasse? Certo ou não seja mudarmos o mundo, bem como inegável seja quanto o for possuírmos disso tão só ideias, qual solução tal 'revelação' traz
para o andar das coisas e o nosso? Qual a utilidade disto?" A utilidade
que teve desde quando o eleata Parmênides sentenciou "ou é, ou não é,
ambos, não" e noutro fragmento extraviado de seu poema alertou sobre as
ideias serem tudo o que temos ao alcance, lição inequívoca e mal aprendida,
embora, mesmo por quem lhe deu alguma atenção, à exceção de
Pirro, é possível: em suma, é útil no cuidado com o dizer, com os rumos que toma e com os que pode
tomar, em especial quando por moto se tem a crença cega de ser
possível provar algo além do pensado, das ideias. A razão disto está
dada também naquele tal fragmento extraviado, inaugural da noção de para
nós tudo existir por intercessão da ideia: pois é ela o que o 'cria', pouco
importa se no sentido de 'engendrar' ou no de 'fazer sentido', porque
se de fato ela engendra, não é mesmo possível o provar, vez que a prova não passaria de mais um engendramento, enquanto 'fazer sentido', para
nós ao menos, é a maneira única que temos de engendrar. Sem apropriados pensar e dizer, em resumo, nada há.
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