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Wednesday, May 1, 2019

Do que o idealismo puro se permite dizer


Tente provar para si mesmo que existo para lá de uma ideia em sua cabeça e que, por exemplo e inclusive, pode estar sendo sugerida por qualquer coisa sem a menor relação com o que acredita ser de fato eu, isto é, carne e ossos, entre outros atributos. Tente e conceda a si próprio uma prenda depois de o conseguir - se conseguir. Uma sugestão: digamos que esteja frente a mim, em pessoa, acreditando por isso que pode lançar mão dos sentidos para encerrar a questão - afinal, está me vendo, pode me ouvir, tocar etc. Entretanto, pergunte-se, antes de se precipitar em conclusão rasa, o que no interior de uma cabeça os sentidos são, senão ideias de que se percebe - ou de se haver percebido - e o que ou quem garante não ser esse, o da percepção, o momento crucial do engodo por trás de que estaria um celebrado 'malin génie': a distinção entre uma sensação em ato e sua lembrança seria descritível, em princípio, como uma nota aposta à ideia de cada qual, uma ideia agregada a cada uma das outras - o que, em realidade, pode não passar disso mesmo, haja ver a relativa e descômoda frequẽncia de se estar seguro de sentir, quando na verdade se está apenas lembrando, e vice-versa. Ideias, ao que parece, são as únicas coisas de que, com boas razões, se pode dizer existirem e serem tudo o que nos é dado possuir.

Fique à vontade para experimentar o tanto que acredita convir, mas permita-me intervir ante um brinquedo fatal para uns tantos. Que não o surpreenda, assim, depois de exaurir-se em experimentos e tendo mantido o prumo mental, que conclua que existo - além de tudo mais à volta, incluso o seu próprio corpo! - por somente acreditar. A depender de seu estado de espírito ou inclinação pessoal, pode sentir-se decepcionado ao se ineirar de que em fim de contas jamais passou de crédulo a mais, que confiou num argumento de que não há provas, nem como provar, embora, por outro lado, possa entrever nessa credulidade o sentido - algo enfraquecido, no entanto - do mecanismo que a parte sólida da teologia, em particular a cristã, tornou famoso e cujo nome tem hoje uso trivial, a saber, .

Mal sabe a cristandade nominal, entretanto, que falar de fé, assim como a entende a doutrina, da maneira ligeira que fala equivale a pronunciar em vão o nome de Deus - o que também faz, de modo explícito, até sem o perceber. Entre outras coisas, isto é o que se aprende do considerar com o devido cuidado a melhor e talvez única definição rigorosa que se tem desse fenômeno ou sentimento, a que nos dá Paulo em Hebreus 11.1 - aqui, na versão traduzida da King James Bible: "Fé é a substância das coisas esperadas e a prova do que não se vê". A fraseologia filosófica, típica dos gregos, é aí inconsteste, bem como, independentemente de outros motivos para usá-la, a clara intenção de falar para uma mentalidade mediterrânea impregnada de tudo quanto à época era helênico já, pelo que se demonstra com facilidade ser a fé aquilo - ou a 'matéria' - de que é feita a esperança, sendo por isso ela própria prova do quanto por certo se obterá por esperar, embora estando isto para lá do que é possível perceber-se (ou "o que não se vê").

Para compreender o sentido - o forte - de 'fé', perceba agora você o quanto espera, tem esperado, a cada instante da vida, mas procure considerar não apenas aquilo que tem por grandioso ou por esse valor aproximado. Perceba que, sem 'dar fé', isto é, sem notar que a usa, espera mais amiúde por coisas bem simples, como reencontrar aquele a quem disse 'até amanhã', dar o passo após um outro, e até o piscar involuntário dos olhos: por tudo isso e tudo mais espera, observe, espera realizar cada qual dessas ações comezinhas, e mesmo depois de se haver inteirado da regra d'O Jogo, a única, a que estabelece inexistir prazo certo para o jogador ser retirado - ou retirar-se - da partida. Espera-se, pois, sem garantias de obter, mas como se com certeza - por apenas esperar - o fosse, e por consolo, é possível, tem-se a suspeita de que daquela vez, a verdadeiramente última, a de sair d'O Jogo, não se saberá então que se obteve nada (ou o nada, ele próprio) - a despeito de as religiões em geral alegarem que mesmo aí haverá algo, sim, não de necessidade bom, mas por certo o merecido por cada um, tendo em vista como se portou ao longo da 'jogatina'. A ideia de 'crer', como se percebe, pode ser aqui entendida como apenas subproduto da ideia de 'fé', modo impreciso de descrever seu efeito, uma vez que o indivíduo - por assim dizer - em fé, não tem, a rigor, no que crer, porque, assim como a delineia Paulo, a fé é autossuficiente, uma vez ser matéria de que se faz justo aquilo por que se espera e, enquanto tal, é também prova - evidência - de isto haver, malgrado para lá do alcance dos sentidos (e , por isto mesmo e a rigor, esperado).

Fé é a presença - a real - do que, fosse apenas pelos sentidos, seria mero aguardo, e de meras ficções, sendo desnecessário, ao contrário, crer-se no que está evidente existir: muito além de crença, ela é certeza - e inabalável. Paulo deixa claro ser a fé o que faz você andar sem reservas de par com o tempo, sincronizar com seu passo inalterável como se houvesse escolhido fazer isso por toda a vida - ou mesmo sem o querer, mas como se o tivesse querido ou como se nem sempre se desse conta de alguma vez ser possível o não ter quisto. E tal fará você, repita-se, sem saber até quando, ou até quando achar que bastou - sim, não pense que também por isso não se espera, que em escolha assim não esteja envolvida a fé como Paulo a postulou: talvez aqueles que desse modo o decidam, a despeito do desprezo ou desespero dos que ficam para trás, tenham em mente somente desafiar a regra d'O Jogo, reescrevê-la, ainda que lhe apondo mera nota ao rodapé, pois, afinal, cometem uma das possibilidades, uma das jogadas válidas (por concebíveis), portanto, embora nem todos os que a usaram e se fizeram justificar tenham tido oportunidade ou a paciência de deixar isto esclarecido.

Fé, finalmente, é sinônimo da própria vida, do viver: um sujeito morto é indivíduo sem fé. E, fossemos mais sábios, um pouco somente, já teríamos entendido que tudo quanto vive o faz por fé, em fé, e inclusive já suspeitaríamos de ela estar presente no que supomos inanimado, na matéria toda -  ainda que morrente ou em processo de desagregar-se, pois há movimento, alguma vida, no que se desfaz e enquanto não se desfez, estando em vias, apenas, de se refazer noutra coisa, também plena em fé. Por isso, o termo 'católico', quer dizer, 'universal': devido à noção de se haver chegado ao cerne comum, o cerne ele mesmo, que ninguém seria capaz de negar - justo por estar vivo e, assim estando, não ser possível não haver fé. E só por ela é possível conhecer Deus sem sombra de dúvida: em face da fé os dois principais artifícios para demonstrar Sua existência, Cosmológico e Ontológico, não passam de ensaios de redução ao absurdo que, ao fim e ao cabo, provam melancólicamente como e porque Ele é indemostrável por caminhos que não o da fé. Na fé não há incômodo em não se ter Deus ao alcance dos sentidos, porque, repita-se, como mostra Paulo, ela é "prova do que não se vê", desde que se espere ou, em fé, se queira ver.

Deus é somente o objeto último ou maior da fé, não o seu único. Mas para ela (ou nela) pouco interessa saber como ou o que Deus é além da esperança de com Ele ou por Ele fazer das coisas - do mundo - sentido, bem como lhe é de escassa importância saber qual sentido têm, se é que mais de um é possível e porque ao menos um, é certo, há. E é nesse sentido que temos ideia de existirmos, pouco importa que d'Ele, assim como do mundo, só tenhamos ideias por testemunho privado, exclusivo, não compartilhável, nada obstante entretenhamos também a ideia de o compartilharmos. Não, não é dizer, assim, que a ciência é impossível, ilusória, insensata, que o conhecimento não há. Não. É, ao contrário, dizer que só por fé podemos conhecer: e a ideia de haver um Deus, ainda que distante desta que hoje fazemos, foi em verdade o 'fiat' da ciência no homem inteirando-se do irrespondível, da questão da origem: foi em resposta a isto que a fé prontamente apôs Deus, ou a ideia de haver a causa das causas demais.

Quer saber o que é, como é a ciência, como se dá o conhecimento? Olhe para Tomé: era-lhe preciso tocar a chaga, o que lhe foi concedido, já que isso lhe parecia fundamental para o exercício da fé, e não porque a chaga tocada fosse, enquanto ideia, em essência diversa da chaga vista, embora importe admitir que dentre os sentidos o tato é o único a implicar a noção de proximidade espacial certa - além de ser de fato único, isto é, ser esse do qual os demais são variações sintonizadas para distintos padrões vibráteis do mundo. Mas, que se repita: a chaga tocada jamais passaria, em Tomé, da ideia de tocar ou de haver tocado a chaga e, enquanto ideia, nada nela lhe garantiria, inclusive, que fosse chaga o que tocou ou mesmo que tocou seja o que for: entre ela, ideia, e o que se estima tê-la causado há abismo intransponível senão pela fé, ainda que formulada naquele seu sentido menos forte, o de 'crença'. Como Tomé em sua obstinação pelo toque, a ciência elege, não um sentido em especial, mas sim um modo de usar todos, a começar por os pôr sob suspeita, como se o apóstolo, depois de seguro de a chaga ser o que vira por tê-la, enfim, tocado, passasse a duvidar da identidade de quem a carregava e dos que o reconheciam como o Cristo, multiplicando-se em perguntas que brotam de outras quando respondidas, e como se fosse possível serem absolutamente credíveis as respostas a quaisquer delas.

Consoante a anedota em que frente ao mar Agostinho meditava a Trindade ao passo que uma criança - ou anjo - se ocupava de, numa concha, transportar para buraco ínfimo na areia a água que colhia na marola, a ciência quer pôr o mundo nesse orifício diminuto - ainda que infinitesimal - escavado na realidade e a ela aberto, de hábito chamado 'mente', mas como se prescindindo, para tal, das facilidades do sentido fraco da fé, o de crença, jogando com o duvidar do que percebe, na expectativa de incrementar ou de assegurar, assim, a certeza frágil que o acompanha, no entanto para apenas inteirar-se, bem mais adiante, de que ao fim não foi possível prescindir dele por completo, de que haverá de haver ao menos algo - ou mancheia disto - em cuja verdade ou realidade terá de crer sem mais questionar, reconhecendo, além de tudo, tratar-se isto de fundamento, ou de noções sem as quais o conhecimento restante é impraticável, os chamados axiomas. É preciso - e mesmo natural parece ser - haver crença no que dá suporte ao conhecer, ainda que o qualificando de 'autoevidente', em fim de contas eufemismo de quem se viu forçado a contrariar de seus propósitos um dos maiores (o de duvidar enquanto artifício para se chegar à certeza do que se provou ou se quer provar), de quem foi vencido, em sua obstinação de duvidar, por esse aspecto da fé.

Por natureza, é fácil ver, a ciência não passa de laboratório ou, seria mais acertado dizer, de sala de interrrogatórios instalável em qualquer nicho do mundo, desde a mente mesma do interrogador, digo, cientista, até as maiores extensões a céu aberto - ou no próprio céu, se assim convier. Aí crivará ela a realidade - ou alguma de suas manifestações, entre as quais a ideia de número, entre as ideias demais - de perguntas, algumas tolas, até, como se para confundi-la, depois de seja algemá-la, amordaçá-la, ou seja o que ao inquérito pareça apropriado, de modo a obter respostas precisas que, julga a ciência, decorrem necessariamente, isto é, deriváveis de cada uma das prévias coerções induzidas. Desse viés a ciência é como o reverso da Justiça, que deve inquirir segundo lhe instrua uma lei e em nome de outra que por suposto fora contrariada: nos laboratórios a questão é conhecer a que leis a interrogada está submetida - e, se é cerceada, não é tanto por maldade, mas por presumir-se que falaria demais se não constrangida, que falaria a ponto de inviabilizar o inquérito: nascida com a ideia de Deus e secreta ou tacitamente determinada a encontrá-Lo, a ciência entretanto - como sugeriu o Estagirita - não lida bem com a noção do muito grande, do muito geral, com a noção da totalidade, pelo que, nada obstante, vive tentada, e com o que é fadada a conviver na consecução do que se propõe realizar .

Em sentido absoluto a totalidade - ou a grandeza maior contendo as demais todas - é impensável; inexiste, assim como inexiste absolutamente o ínfimo e, segundo a noção de tempo, princípio e fim absolutos:  desde quando concebida, a ideia de Deus deixou pistas claras disso. Princípio e fim não escapam de ter questionado o que lhes vem respectivamente antes ou depois, assim como maior e menor seduzem pelo que lhes estaria além e aquém em dimensões. Tais ideias só têm sentido relativo, em contextos limitados. De absoluto no mundo parece haver a noção de tudo ser relativo - no sentido de as coisas se definirem umas em contraste com ou em relação às outras. É a relatividade das coisas o que nos sugere a inferência de haver indivíduos, que nos propicia a individuação, nada obstante noção transitória ou relativa a o que na ocasião viu-se conveniência em individualizar, uma vez que para cada indivíduo é sempre possível encontrar seja as partes (indivíduos que o compõem), seja os atributos, seja indivíduo maior que o contém.

E individuação provê o número, a rigor capaz de somente exprimir quantidade e, imbricado nela, o sequenciamento de indivíduos, a ordem. Número é abstração que é provável ter iniciado com relacionar objetos de conjuntos quaisquer a, entre objetos outros, os dedos das mãos. Em essência não passa de uma a mais dentre as abstrações incontáveis ordenhadas nos currais do que chamamos 'linguagem', mas para a qual se deu e se dá atenção sem limites, de sorte que da condição originária de ordenação de quantidades segundo cada qual possua certo indivíduo a mais ou a menos do que as quantidades que lhe são contíguas, bem como da operação única a que se sujeitam, o adicionar, e seu reverso, o subtrair, de tão pouco, pois, se urde como que universo monumental de truques, mundo esse cujas dimensões levam o incauto à suspeita de haver-se descoberto - ou criado - linguagem distinta da chamada 'linguagem' ela mesma, falácia batida do, por hipótese, equiparar a parte ao todo (na qual se perde o sentido de um não ser a outra), desculpável, entretanto, pela eventual e engenhosa evasiva de que é usada à guisa de tão só metáfora. 'Truques', sim, porque nada além de truques são multiplicar, dividir, exponenciar, radiciar e os demais com que se realizam em lotes a adição e, claro, seu reverso, a subtração. E 'mundo', sim, também, pois o mero adicionar e subtrair, em particular quando produzido aos lotes, é capaz de revelar aspectos insuspeitos da ordenação de quantidades, como irregularidades, vazios fenomenais, repetições sem fim, aberrações desenhando-se no que o imediatismo associativo entranhado na capacidade de pensar põe-se á vontade para apor aí, sem maiores esforços, o que infere haver no mundo (o mundo 'ele mesmo'), a paisagem suposta existir para lá do sujeito e de sua capacidade de pensar.

No entanto, a despeito de sua utilidade em praticamente tudo que, humanos, somos capazes de fazer, há certo consenso, faz milênios, que, em seu rigor, em conjunto com as formas austeras - ditas 'geométricas' - de imediato associadas a ele, o número não é - não pode ser - parte do mundo como o concebemos, pois até mesmo as irregularidades que apresenta o seu contínuum parecem indicar que advém de natureza distinta desta inexata e imperfeita no interior de que acreditamos existir. E se não está no mundo, mas desenha-se como se mundo fora, ora, diz a associação imediatista do pensamento, o número deve estar em mundo outro, próprio, ou ainda, deve ser isso que o consitui, mundo a que não têm - e não podem ter - acesso os sentidos comezinhos, mundo contemplável exclusivamente pelo puro ato de pensar. A habilidade de arbitrar a existência de universos tendo por matéria tão só ideias é provável conter traços de defeitos, morbidades, se não é ela mesma um destes, sorte de cacoete ou sintoma da claustrofobia de quem no fundo suspeita habitar somente aquilo que pensa, domínio de magnitude inestimada que se acredita confinado à exiguidade suposta num crânio.

Mesmo o idealismo, responsável exclusivo pela inteiração de não haver ponte trafegável entre pensamento e mundo (ou entre ideias acerca do mundo e o mundo que se presume causá-las), depois de cumprida sua imprescindível missão, volta e meia titubeia e, aqui e ali, gagueja o que por princípio não lhe cabe sequer conceber, a saber, a sugestão de como o mundo, esse para lá das ideias, deve - ou tem de - ser: trai a si mesmo, por assim dizer, o idealismo, ou melhor, traem-se os idealismos, quase todos, exceto, é possível, o pirronismo original, de que, por azar, pouco ou nada se sabe. A filosofia assalariada rirá, por certo, fazendo pouco das afirmações a seguir, preocupada como está com demonstrar quão imprescindível ela própria ainda é na faina de descrever as coisas - tarefa que lhe usurpou a autodenominada 'ciência' desde quando (o)usou chamar-se 'filosofia natural', nome de que logo abriu mão à guisa de protesto de absoluta confiança em si mesma e com que retirou da filosofia - a propriamente dita - a incerta audiência que a penas cultivou ao longo de milênios: há-de reconhecer-se, primeiro, que o nome 'idealismo' tem de representar uma única essência ou não faz qualquer sentido usar esta mesma e única designação para todas as suas variantes; segundo, não menos óbvio do que o ponto anterior, que o domínio de que trata o idealismo, como indica o nome, tem de ser o exclusivo das ideias; e, terceiro, que seu aparecimento se dá ou se deu com a noção de as ideias, independentemente do que representam, em aparência ordenarem-se segundo princípios próprios, na falta dos quais seu propósito fundamental, o de fazer sentido, é frustrado - e tal sentido, definido como 'expurgado de contradições', teria de se fazer ainda que à revelia do sentido que as coisas no mundo, nelas representadas, aparentam ter.

Assim foi que no seu poema o eleata Parmênides trouxe o idealismo a este mundo com a missão de cobrar das ideias - e de seja qual for a linguagem em que se exprimam - o bastante sentido, a coerência, a purga das contradições, que são enfim uma só - afirmar em concomitância com negar algum atributo de objeto qualquer, o dizer que ele é e, ao mesmo tempo, não é caracterizável de certo modo: isto, Parmênides é enfático quanto ao ponto, é precisamente o que não é possível fazer quem tenha por propósito falar com fidedignidade das coisas, e para o demonstrar propôs como fidedignamente deveriam ser descritas: existindo num universo em que tempo e espaço são declarados impronunciáveis e todo movimento se deveria, segundo os paradoxos que nos deixou seu discípulo Zenão, a uma concessão que faria a consciência a si própria, desdenhando da condição infinitesimal do que observa, do espaço em que supõe moverem-se as coisas, que entre dois quaisquer de seus pontos possui infinidade de outros por que deve passar o que quer que se mova. É o que se deduz também do diálogo em que o velho imobilista é posto por Platão com a incumbẽncia de reduzir a pó e cinza a possibilidade mesma de pensar o universo segundo o eleatismo, não sem antes ter dado tratamento igual à 'Ideia' platônica. Mas Platão, como se sabe, tinha entre suas mestrias a de mostrar como por natureza as ideias são imprecisáveis, à sua maneira contrariando a convicção parmenidiana de que empregá-las com prudência seria a possibilidade ou a esperança única de lograrmos conferir sentido ao que pensamos, e nisto, ao contrário, como bom eleata que foi, alinhava-se Platão a Zenão, embora indo-lhe além, exponencialmente, ao sugerir que a concessão feita a si pela consciência com respeito a tempo e espaço diria respeito também à natureza indefinível dos conceitos, de hábito tratados como se inteiramente definidos fossem.

Nada obstante sucedendo eventualmente em evadir-se da armadilha do dizer como é ou deveria ser o mundo, na qual tende a tropeçar na faina de fazer-se compreensível, tratar-se-ia o idealismo, ainda assim, de filosofia imperfeita, pois tome-se o caso de Pirro, de quem se diz ter-se omitido a opinar sobre a natureza das coisas, alegando lhe parecerem demasiado inconstantes para merecerem sua opinião - isto é, para que lhes atribuísse sentido final, definição: Pirro devesse porventura  ter-se mantido aí em silêncio, e é provável o não ter feito por cortesia para com seu interlocutor, porque seria igualmente improvável soubesse, em virtude mesmo de sua opinião,, se não apenas existir quem o inquiria, ao menos também que o sujeito tivesse por válida sua resposta: pois como aferir a inconstância do mundo se é algo no mundo o que anuncia tal inconstância? Parece que a verdade última do idealismo, se admitida, só pode o ser por conta e iniciativa próprias de quem a admite, espécie de epifania que perde em fulgor se transferida a outrem, e neste sentido é que o idealismo puro, radical, tende ao solipsismo - como nas Meditações o demonstra Descartes, que o delineia com o fio do ceticismo pertinaz para justo pavimentar o caminho ao fim do qual estaria, inegável (assim, parece, acreditou), a realidade, o mundo real, pagando aí mesmo o filósofo por sua língua, uma vez confinado de livre-vontade à solidão absoluta das próprias ideias: por não ver como escapar-se dali sem lançar mão de Deus que, a crermos no que escreveu, o lança de volta, como se por milagre, ao convívio mundano das coisas.

A travessura idealista de Descartes por certo ilustra a ductibilidade da argumentação, rigorosamente racional, dirigindo-se ao idealismo em contraste com a inexistência de meios senão os radicais, como - no caso - o arbítrio da intercessão divina, para trazer de volta a ideia do realismo, embora na condição de postulado. No entanto, isto obviamente não acarreta, como sugere Collier, a inexistência da realidade para lá das ideias, a que é suposta originá-las, e sim haver nada a dizermos dela, como quis Pirro, ao sujeito competindo somente arbitrar ou arrazoar sobre as ideias que possui, incluindo as de que  de fato experimenta o mundo, de que é de fato capaz de alterá-lo, contanto que as não extrapole. Esta observação serve também a uma distinção crucial, estabelecida entre o que seriam duas capacidades, a de narrar  - ou teorizar - a realidade, a suposta 'por trás' das ideias, e a de interferir nela, ainda que disto só se possua a ideia de que se o faz, sendo a primeira muito mais marcada por dificuldades e insucessos do que a segunda, embora esta só frutifique, como o faz, óbvia e paradoxalmente por intercessão da anterior, de modo que, assim como inexiste teoria sem alguma práxis, não há também práxis sem a mínima e adequada teoria a orientá-la, ainda que incerta e de fato mutável, como é habitual toda teoria ser. A atuação no mundo, aqui chamada de 'engenharia', distingue-se do relatá-lo por ser atitude muito mais flexível, adaptável, do que este, de modo que tudo quanto o teórico não é capaz de prover ao 'engenheiro', este é instado a superar com o bastante improviso que, por seu lado, é de inestimável serventia para o próprio teorizar, renovando-o.

'Engenhar' é, enfim, tudo de que somos capazes, a despeito de, é mister insistir, isto poder tratar-se de tão só a ideia de engenharmos: do fazer arte à tecnologia, passando pelo teorizar ele próprio, incluso o chutar com desprezo - como fez um certo Dr. Johson, julgando assim refutar Berkeley - uma pedra, nada disto consistindo entretanto em prova, insista-se, de que se o faz ou de que, mesmo o fazendo, possuamos mais do que a ideia de o fazermos. "Mas", irromperá o incauto, "de que serve tal impasse? Certo ou não seja mudarmos o mundo, bem como inegável seja quanto o for possuírmos disso tão só ideias, qual solução tal 'revelação' traz para o andar das coisas e o nosso? Qual a utilidade disto?" A utilidade que teve desde quando o eleata Parmênides sentenciou "ou é, ou não é, ambos, não" e noutro fragmento extraviado de seu poema alertou sobre as ideias serem tudo o que temos ao alcance, lição inequívoca e mal aprendida, embora, mesmo por quem lhe deu alguma atenção, à exceção de Pirro, é possível: em suma, é útil no cuidado com o dizer, com os rumos que toma e com os que pode tomar, em especial quando por moto se tem a crença cega de ser possível provar algo além do pensado, das ideias. A razão disto está dada também naquele tal fragmento extraviado, inaugural da noção de para nós tudo existir por intercessão da ideia: pois é ela o que o 'cria', pouco importa se no sentido de 'engendrar' ou no de 'fazer sentido', porque se de fato ela engendra, não é mesmo possível o provar, vez que a prova não passaria de mais um engendramento, enquanto 'fazer sentido', para nós ao menos, é a maneira única que temos de engendrar. Sem apropriados pensar e dizer, em resumo, nada há.