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Wednesday, September 7, 2016

Teleologia e antropocentrismo em drama para descobrir-se que assim é só por ser bom

Adorável o detalhe, em sua alguma ingenuidade, da chamada(*) para ensaio sobre a razão de gostarmos de pimenta. Afinal Darwin teria dito, como há quem acredite, que os organismos têm evoluído com propósitos próprios, como o alegado ali, da pimenta, de evitar ser alvo da fome de mamíferos, queimando-lhes a boca, ou que a evolução é como que cega e apenas resultado da capacidade de os indivíduos suportarem ou tolerarem os acossos do meio onde vivem e, naturalmente, de passarem adiante (por intermédio dos genes, completaria Mendel), as características que os habilitaram a tanto? A autora, no caso, cuidou de apor um 'provavelmente' (likely) à hipótese, 'provavelmente' adquirida de um cientista, de que as pimenteiras se previniriam de ter gorada sua reprodução por bichos como nós, que maceram sementes.

A ciência continua sendo alérgica a proposições teleológicas cujos sujeitos não sejam reconhecidamente conscientes e, mais especificamente, do modo como, humanos, o seríamos. Embora venha cedendo nas últimas décadas, permitindo que membros, até ilustres, de sua comunidade reconheçam consciências em galinhas, abelhas e enfiada de espécies em que antes só se admitia o instinto (seja isto o que for), o universo científico ainda está longe de admitir que outro bicho além do homem esteja habilitado a promover deliberadamente mudanças em sua própria estrutura biológica, ou ainda, a deliberar sobre a própria evolução. Pouco importa constatarmos que tudo, sem exceção, colabore para o perpétuo estado de transformação em toda parte, que a ação de formigas, digamos, é provável estar condicionando a reprodução e, em consequência, a evolução daquilo com que têm contato, além da sua própria: para grande fatia da ciência haveria nisso apenas o instinto de sobreviver, não o propósito dos indivíduos de mudar o entorno e assim mudar, inclusive, a si mesmos.

Enfim, viver seria imperativo universal a que os organismos todos estariam subordinados e sem alternativa de o desobedecerem. Mas enquanto a 'animalia' invariavelmente rasteja perante essa todo-poderosa determinação, nós humanos teríamos a opção de determimar como o faríamos, se a cumpriríamos de pé ou até se a cumpriríamos (faz pouco éramos para nós mesmos a única espécie capacitada para o suicídio: hoje há suspeita de haver outras). Esse, em linhas gerais, o ponto donde contingente considerável de cientistas tem abordado o mundo, o viés antropocêntrico.

Em grande medida inevitável e não só em ciência, o antropocentrismo é aí um dos mais graves empeacilhos também: por tender a espécie de narcisismo, que fixa permanentemente os olhos de suas vítimas nos espelhos, onde características diversas do restante do mundo, suposto objeto de interesse de grande parte da ciência, aparecem invertidas, quando não também distorcidas pelas imperfeições da superfície refletora.

E nesse mundo não se pode encontrar, segundo a ideia de ciência que guiou Darwin, nenhum propósito exógeno a condicionar seu movimento, em outros termos, Deus, não talvez por qualquer mesquinhez narcísica nossa, mas em suposto benefício da verdade, uma vez que motor assim, divino, a ciência não tem sido hábil o bastante para detectar sem abrir mão de o provar ou, pior, porque supondo que o encontrássemos, provável seria que obtivéssemos nada além de resposta malcriada à única e tola pergunta que sobraria na circunstância: "Já sabem como funciona, acabam de descobrir quem o fez e ainda têm a petulância de pedir que lhes diga por que? Ora, fi-lo porque o quis, por achar que seria bom. Qual outro motivo haveria? Só não me façam acreditar agora que estive errado!" Não por acaso é resposta análoga a que a autora encontra depois de nos perguntar (e de se perguntar, é claro): por que, depois de todo o processo por que passou para desagradar-nos e proteger suas sementes, degustamos pimenta?

(*) "Peppers developed capsaicin to keep mammals away."

Thursday, February 25, 2016

Da consciência da máquina

Faz pouco li dum articulista do Scientific American as suspeitas de as máquinas já estarem de há muito conscientes sem que no entanto o tenhamos percebido. Há tempo canto essa pedra e por mais isso passo por louco. Sorte essa minha a de dar com apoio assim inesperado, embora tenha sido sempre caso de boa-vontade mínima aceitar a hipótese de as máquinas estarem de posse de alguma consciência, pois justo por ignorarmos definição consensual do estar consciente deveríamos ao menos suspeitar existirem diversos modos de ele ocorrer.

E a despeito desse hiato em nosso conhecimento, o exercício de preenchê-lo não teve poucos êxitos, o principal, em minha opinião, a admissão forçosa de que a vida, pouco importa sob que forma, parece acarretar no indivíduo alguma noção de si acompanhada do necessário autoapreço, resultando na própria preservação. A seguir nesse passo, a noção de o Universo como um todo ser consciente em breve será consenso, o que não me parece exagero, bastando para tal entendermos que, além de necessariamente preservar-se, ele estaria vivo.

Sim, pois até aqui só percebemos como lúcidos os quantos partilhando conosco certas caracterísicias, em particular a de possuir um corpo a ser a todo custo preservado e ao redor do qual se é edificado. Sim, porque até onde somos capazes de reconhecê-la, a consciência seria o que conserva a individualidade no âmbito de padrões mínimos para que se reconheça como tal ao longo do tempo, ou seríamos cada qual a todo instante outrem ou mesmo ninguém. Isto, claro, até onde podemos por enquanto saber.

A neurociência hoje tida por séria tende a dividir comigo esse julgamento. António Damásio, por exemplo, não deixa dúvidas num seu monumental ensaio quanto a crer que ao menos em nós (espécimes por ele estudados) a consciência é tudo quanto emerge tendo por fim manter-nos vivos, unos. Já o senso comum, embebido ainda em filosofias incertas sob o comando de - entre outros - religiões, não esconde seu desprezo por isso que, em fim de contas, é o tanto que nos permitem dizer as evidências quando é mínimo o compromisso com a verdade.

O vulgo, assim como filosofia e ciência que o acompanham, escolhe contemplar tão-só a superfície de processos cuja espessura nos liga indissoluvelmente à própria Terra, a capacidade de sonhar decorrente deles que nos põe - e não apenas ela - as cabeças nas estrelas e além… Resulta disso a assunção do que não pode ser provado ou testado e sequer no ambiente estrito da fantasia, assim reverberando as ilações famosas de della Mirandola e de Protágoras (de que muito caçoou Platão) a ponto de torná-las irreconhecíveis.

Dessa teimosia decorre por certo a concepção de consciência incorpórea e desta a multimilenar justificativa para toda sorte de crueldade que usamos para com a vida ao nosso redor, aí incluída a humana quando por qualquer razão se a considera inferior. Se algo nesse quadro mudou nos últimos tempos foi o aparecimento de infinitas nuances da ideia de alma, quando antes havia nenhuma e o espírio humano reinava incólume sobre a bestialidade - evidente é que com múltiplas exceções. Hoje é quase de domínio comum atribuir-se aos cães, por exemplo, almas, bem como a quase tudo mais quanto sobre o planeta tem saciado a fome do homem.

O caminho para a admissão de a máquina igualmente possuir consciência (embora não, decerto, espiritualidade) está, pois, pavimentado. Entretanto falta dar-lhe corpo com a funcionalidade própria do que admitimos estar consciente, a saber, capacitado a defender-se por si dos acossos do meio - onde é previsível haver, inclusive, outras máquinas - e a regenerar-se por meio das escolhas que faz nesse espaço, além de, é claro, o suficiente para perceber-se nos mínimos detalhes, ainda que não todos sob o horizonte de sua atenção, ou seja, prover-lhe de percepção de si em incontáveis camadas desde o automatismo até a volição, torná-la senciente. Uma máquina assim constituída dificilmente será tachada de autômato no ato de interagir com humanos.

Mas enquanto houver quem lhe troque as peças e, mais importante, lhe arbitre o momento de trocá-las ou, o que é o mesmo, lhe diagnostique no que é prerrogativa da consciência perceber antes de decidir procurar ou não por ajuda, dificilmente reconhecer-se-á na máquina algo mais do que emaranhado de circuitos com alguma função preestabelecida. Isto a despeito da possibilidade de já possuir hoje, agora, alguma forma de autodeterminação, que não entenderíamos enquanto seja teimarmos em não definir a contento a consciência assim como a conhecemos ou experimentamos, seja estivermos por isso a distância fenomenal de compreendê-la em suas outras prováveis facetas, em suma, de ampliar-lhe o conceito de modo a fazê-lo compreender o que ainda não tomamos por consciências.

Observe-se não ser improvável que o movimento do homem na direção de produzir máquinas conscientes o esteja levando na direção inversa, como se doassem os pais ao feto algo de suas maturidades ou de suas vidas no ato de o conceber, tornando-se mais infantis ou deixando-se acercar da própria morte. Sinais do fenômeno abundam desde bem antes a disseminação do controle remoto, cujo uso, pressupondo embora sujeito volitivo, tem sido capaz de relegar grande parte dos usuários a condições que estimávamos exclusivas do reino vegetal, desse modo comprometendo a suposta plenitude anterior de suas consciências.

Não é de hoje também o recurso generalizado à opinião alheia, ainda que reconhecida por especializada, quando o assunto é a saúde do indivíduo. Não só as máquinas têm necessidade de quem as repare. Mas a contar com os prognósticos de, por exemplo, áreas combinando a engenharia genética à nanotecnologia, em breve esse hábito chegará ao paroxismo com a inundação do mundo com mecanismos pequenos o bastante para serem imperceptíveis aos sentidos no seu grau normal e capacitados a detectar-nos, antes de nossos sistemas autônomos, o menor desvio de funções, bem como a corrigi-lo sem consulta prévia do sujeito. A progressão disso pode não ser clara, mas não é difícil imaginar seus contornos caso se confirmem previsões outras como a de que tais máquinas serão produtos em série de outras decidindo todas à nossa revelia cada detalhe das próprias tarefas.

Digno de nota que tal não terá ocorrido por força de lei natural, enfim, por estrita determinação da circunstância de criarmos máquinas independentes, mas de livre vontade - afirmação aceitável ao menos enquanto não encontrarmos para o fato outra causa, atávica, como a que confere sentido à´conhecida lei do menor esforço. Desse modo teremos de futuro não apenas criado uma descendência em termos de espécie, mas também oferecido a ela o que restará de nós à guisa de brinquedos ou de espécimes para experimentarem, talvez na esperança de que nos recriem em versão melhorada. Os mitos tradicionais quiçá omitam - quiçá deliberadamente - esse aspecto da Criação, em que Deus teria também consentido em que O usássemos sob todos os aspectos a nós possíveis, desde as guerras feitas em Seu nome até os torcicolados no limite das espirais ou meramente caóticos feitos com a ideia que fazemos de Si, com Sua essência.