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PQP

PQP é abreviatura de 'Pensando Questões Prováveis'. Por vezes irrefletidas, tais questões serão inferidas do que se segue.

Como indica o título, escific - acrônimo doravante usado para referi-lo - não faz ficção científica. Faz ciência, assim como de hábito entendemos o termo, mas puramente imaginada - ficcional - e não imaginária - fictícia. O sentido habitual de ciência é o de perquirição das causas ou do funcionamento dos eventos no mundo, algo praticado não apenas em laboratórios ou por indivíduos portadores do título de cientista, mas por precisamente indivíduo qualquer. O que distingue a prática científica de uns e outros é o rigor dos critérios de aceitação dos resultados, maior na dos primeiros.

Em boa medida 'ficcional' e 'fictício' são sinônimos, embora o uso tenha produzido certa 'degradação' no segundo, de modo análogo ao que ocorre a seus sinônimos 'imaginado' e 'imaginário', respectivamente. Os quatro termos designam objetos da imaginação, embora em cada par os primeiros se distingam dos segundos por pressuporem a possibilidade crucial de realizar-se o que se imagina, a verossimilhança.

É evidente que, segundo o que se mostrou, 'fictício' e 'imaginário' conotam objetos necessariamente não verossímeis.

Exemplos de objetos fictícios ou imaginários são problemáticos, se não inteiramente inexistentes, impossíveis. Creio ser a razão disso o fato de tudo quanto vai pela mente ter de necessidade origem no mundo, que é suposto estar além dela, mente. Ainda que a imaginação conceba algo inencontrável na realidade mundana, isto é contingência, é constatação datada, nada impedindo que se o encontre noutra oportunidade. O unicórnio pode bem ilustrar o que se diz: embora desconhecido na face da Terra, nada impede que animal dessa forma seja encontrado em outro planeta (ainda que tal se suponha muito improvável) ou que a genética se disponha a criá-lo. Desse modo o unicórnio se enquadra na categoria ficcional ou imaginada. Certos polígonos e soluções geométricas desenhados por Escher parecem exemplificar objetos imaginários ou fictícios, mas mesmo esses, a despeito de impossível construí-los, estão lá, no trabalho do artista, sugeridos com precisão em sua impossibilidade de construção para além de gráficos. Estão, por conseguinte, realizados, tornam-se verossímeis ao menos dessa forma: negar esta conclusão acarreta considerar papel e traço do artista como irreais, o que não faz sentido.

Sim, é provável que o único objeto fictício ou imaginário seja propriamente a classe de objetos fictícios ou imaginários - destarte não vazia somente por conter ela própria como elemento.

Em sendo verossímil, a ciência ficcional - doravante cific - não é de necessidade verdadeira em termos de corresponder aos objetos nela designados ‘objetos no mundo’: tal correspondênca é contingente. Mas de necessidade a cific não é fictícia ou imaginária, por tal não ser possível, como já se demonstrou.

A cific também é de necessidade consistente, ou melhor, como qualquer ciência, é conjunto de proposições ou enunciados logicamente verdadeiros, ainda que de necessidade não o seja a correspondência de vários deles com objetos mundanos (isto é, sua correspondência com objetos do mundo sobre cuja existência há algum consenso), pelo que tais proposições indicariam haver no mundo outros objetos, possíveis e ainda não detectados. Nisto consiste a sua consistência. Caso contrário tais enunciados estariam mal formados, não fazendo sentido em si, por si e, ora, como ocorre nas demais ciências, as presumidas não ficcionais, cumpre então corrigi-los ou retirá-los do corpus da cific.

Sim, procede chamar a cific de ciência do possível, epíteto que em absoluto não a particulariza. Até verificar-se - ou seja, até que se demonstre a verdade de sua correspondência com a realidade mundana - toda ciência refere o possível. Se não o faz, trata-se de tese falsa, a ser emendada ou eliminada do corpus científico.

Não, o fato de desdenhar da integral e imediata correspondência de suas teses com o mundo não torna a cific fictícia, em princípio, como já se demonstrou, por inexistirem objetos fictícios, à exceção, talvez, da própria classe de objetos fictícios. (Ainda que não se o faça, seria conveniente estatuir-se aqui, como medida de praticidade, os significados de fictício e imaginário em estrita identidade com os de ficcional e imaginado, uma vez que, do modo como os modulou a linguagem comum, os termos do primeiro par não significam objeto algum.)

Na cific não se desdenha do fator empírico, em absoluto! Nela apenas inexiste, enquanto prioridade, o recurso à experimentação assim como a define e empreende a ciência clássica, salvo se fácil, exequível, em uma palavra, oportuna. A cific contenta-se com os dados da experiência que espontaneamente lhe vêm à mão.

É evidente que a cific se fia na aparentemente indemonstrável cumplicidade de linguagem e mundo (isto, é claro, quando há essa cumplicidade, quando na linguagem se formam proposições correspondendo a algo reconhecível ou passível de existir no mundo), mas tal não lhe parece algo extraordinário - ou 'mágico' - e, portanto, merecedor de mais do que se atribui ao quanto se é incapaz de demonstrar. Basta à cific saber que o tanto passível de conhecer-se no mundo estará para sempre armazenado em formato de linguagem, a qual se constitui basicamente do que se acredita ser apreendido do mundo pela percepção, o que já é, por sua vez, linguagem também.

Sim, a cific não se constrange com estar ‘aprisionada’ na linguagem, com entender que a correspondência entre realidade exterior e ideias não chega a constituir prova de existir tal realidade para além da única disponível, esta das ideias, ou linguagem, nada obstante ser ciente da presença insidiosa da ideia de a linguagem ter por 'fiat' - ou despertar - a realidade externa, a qual lhe confere, no mínimo, o conteúdo. E tal lhe é axiomático.

Por isso, ou seja, por ter a noção de a linguagem e seu sujeito serem não menos coisas mundanas do que as demais é que no tocante ao fator empírico a cific confere valor exclusivo de experimento ao fato mental, que a rigor é onde todo empirismo tem de ao fim resolver-se, em linguagem, sem falar-se em que - como já se mostrou e é imperativo reiterar - o pensamento (a linguagem) é do domínimo da empiria.

A percepção da realidade externa - ou linguagem - será o árbitro supremo na validação de todas as teses da cific. A despeito de imprecisos, aos sentidos é atribuído o grau máximo de confiança, visto ser por intermédio deles, em última instância, que toda e qualquer interpretação do mundo se efetua. Afinal é preciso que se dê fé de um dado mundano qualquer para se efetivar uma teoria, seja esse dado uma calculação de computador, um gradiente num visor ou o prosaico estímulo de algum dos sentidos produzido diretamente pelo objeto investigado.

Sim, a cific intenta dessacralizar o primado da máquina sobre o corpo, embora ciente do papel e da importância da primeira. Segundo se mostrou, é do corpo o veredicto da verdade de uma teoria, uma vez que é sempre algum dos sentidos o que acusa a percepção do dado decisor dessa verdade, em última instâcia o sentido principal, somatório dos demais, o pensamento.

Está fora do escopo da cific enveradar pelos meandros da precisão que redundam em dízimas, fórmulas e gráficos obstrutivos do sentido essencial em suas teorizações, embora se reserve o desfrute de lançar mão de ideias construídas com o auxílio dos mesmos, desde que convenientemente expressas em linguagem medianamente pensável. Observe-se que a cific não desdenha de nem desmerece o empenho em descrever o mundo com o auxílio de numerais e outros símbolos seus correlatos ou acompanhantes, mas os reconhece como tão-só particularizações do quanto a linguagem realiza, exacerbações de diversos instrumentos desta, particularizações essas de domínio quase exclusivo dos quanto nelas investem. A rigor todo modelo matemático ou lógico do mundo é passível de enunciar-se em linguagem corrente (essa de domínio geral), ou seja, por extenso, sem qualquer perda do conteúdo.

Por princípio a cific é interdisciplinar, ou melhor, no seu âmbito sequer faz sentido o conceito de interdisciplinaridade, uma vez interessá-la o real como um todo e nele ser irrelevante a separação dos objetos estudados por uma sociologia, uma química, uma física ou uma teoria da literatura, já que todos agem reciprocamente sem distinção. Assim uma teoria da cific poderá iniciar em premissas de hábito atribuíveis, por exemplo, à economia e concluir com um objeto costumeiro da geologia, antes tendo passado por outros da filosofia da religião, da física quântica e da genética para dar curso aos seus objetivos. Entretanto, é muito provável que uma teoria da cific conclua de maneira que se reconhece como ética, pois entende a cific ser objetivo final de toda ciência a adequação ao meio - o entorno, o universo - de todos quanto se valem de seus resultados e não haver outro termo a designar o estudo dessa adequação senão 'ética'.

Por ética entende-se, na cific, o que traz o termo de sua raiz, caráter, enquanto atributo do indivíduo, o qual, por não estar só no Universo, responde às demandas de tudo quanto lhe está no entorno. E, como qualquer coisa passível de observação, o caráter manifesta-se na interação do indivíduo com o que o instou a agir. Enquanto ciência a ética tem de obedecer ao critério geral de cientificidade, a saber, a cunhagem de conceitos, que por definição tratam da generalidade, e a aplicação destes ao que lhes é específico, naturalmente. Portanto a ela deve interessar, no tocante ao comércio de indivíduo e mundo, tanto o que é, o fato em particular e em geral, quanto o que deve ser, uma vez que a meta de todo conhecimento é a descoberta de modos adequados de o sujeito (cognoscitivo, então) interagir com o mundo.

É evidente que não há motivos para não se cogitar de ser a cific, em fim de contas, pura ética. Uma vez ser possível atribuir a todo elemento individuável do universo um caráter (um ethos, portanto), a identificação da cific - assim como de qualquer ciência possível - com a ética revela-se óbvia. É igualmente lícito, em vista de toda aplicação de conceitos da ética resolver-se sempre no que se pode chamar de uma moral, que a cific almeje, enquanto finalidade de suas elucubrações, uma moral.

Uma moral é qualquer aplicação viável do que sistematiza a ética.

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